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Mulheres: De Musas a Autoras – Sergio Guerra

É quase impossível contar uma história interessante sem a presença marcante de mulheres no enredo. Tomemos a Odisseia, por exemplo, poema épico definidor da Literatura e Civilização Ocidentais, que conta a saga (inspirada por uma Musa) de um herói guiado constantemente pela sabedoria de uma deusa, tentado (mas também ajudado) por uma bruxa, aprisionado (e amado) por outra deusa, amparado por uma ninfa, socorrido (e desejado) por uma linda donzela, auxiliado por uma fiel serva, e sempre desejoso de voltar ao lar e reencontrar sua amada esposa. O que seria de Ulisses sem as (humanas ou imortais) mulheres? O que seria do mundo sem elas? Fossem elas símbolos de virtude, de vício e fraqueza, ou ainda de magia e monstruosidade, elas povoaram o imaginário coletivo da Antiguidade Clássica. Com a queda do Império Romano e a cristianização da Europa, a mulher (vista a partir de então como símbolo do pecado original) praticamente sumiu da temática literária, e somente voltou a ser tema e inspiração de escritores a partir do século XII, com o surgimento do trovadorismo e suas canções de amigo, canções de amor e novelas de cavalaria. Foi com o advento da Renascença que a mulher deixou de ser apenas uma figura distante e idealizada para novamente se tornar a figura humana multifacetada. E embora tantas deusas, heroínas e vilãs tenham alcançado a fama e a glória, relativamente poucas mulheres ao longo da história se notabilizaram por escreverem, por serem as autoras, e não apenas personagens, de tantas histórias.
 

Todavia, os tempos são outros, e as mulheres se notabilizam cada vez mais como escritoras. O século XX, que testemunhou a conquista de grandes direitos democráticos das mulheres, como o direito ao voto, o divórcio, a pílula anticoncepcional, e uma presença cada vez maior no mercado de trabalho, também foi o século em que as mulheres ganharam maior espaço no mundo editorial, não apenas na literatura, como também na política, na filosofia, e em muitas outras áreas. E o século XXI despontou com fenômenos como Malala, a menina paquistanesa que ganhou o Prêmio Nobel da Paz aos 17 anos, ganhando o mundo com o seu livro Eu Sou Malala, e a britânica J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, a primeira pessoa do mundo a se tornar uma bilionária a partir do seus livros.
Porque eu sou (e sempre fui) um fervoroso admirador da sensibilidade feminina, e porque acredito com Novalis que “a poesia é o autêntico real absoluto; quanto mais poético, mais verdadeiro“, presto aqui uma homenagem ao Dia Internacional das Mulheres falando um pouco de cinco poetisas de primeira grandeza, que são célebres nomes da literatura universal. Começando por Safo, poetisa grega do século VII a.C., que foi a primeira autora da literatura europeia. Muito pouco de fato se sabe sobre sua vida, e mesmo sua obra nos chegou quase que somente através de fragmentos, porém sua arte incomparável é considerada por muitos estudiosos como “a própria ideia da perfeição em verso”. Apesar de supostamente ser esposa e mãe, compôs versos que exaltavam o amor entre mulheres. Seu poema “Despedida“ é um dos seus mais famosos e pungentes: “Morrer, é isso que quero: não estou a fingir. / Ela despedia-se de mim com muitas lágrimas / e ainda me disse mais isto: / ‘Ai, que coisas terríveis nós sofremos, / ó Safo! É contra a minha vontade que te deixo.’ / A ela respondi eu estas palavras: / ‘Vai, sê feliz e lembra-te / de mim. Pois sabes como te amei.’“ (traduzido aqui por Frederico Lourenço). O seu “Hino a Afrodite” é um poema que todos os apaixonados — principalmente os não correspondidos — deveriam recitar frequentemente. Safo foi tão importante na Grécia Antiga, que, enquanto Homero era chamado de “O Poeta”, Safo era conhecida como “A Poetisa”. Platão escreveu que não eram apenas nove as Musas do Olimpo, mas dez, sendo Safo a décima Musa.
Da Antiga Grécia vamos para a Inglaterra Vitoriana encontrar uma das maiores poetisas de língua inglesa: Elizabeth Barrett Browning. Sua poesia influenciou muitos outros escritores, como Virginia Wolf e Edgar Allan Poe, e seus sonetos foram comparados aos de Shakespeare. Escreveu sobre temas amorosos, mas também mitológicos, sociais e políticos. Abatida por uma doença misteriosa que contraiu após um sarampo mal curado na infância, doença que a acompanhou por toda a vida, Elizabeth compreendia o sofrimento humano e o abordou em seus muitos matizes. Mulher corajosa e à frente do seu tempo, apesar de doente, desafiou a proibição do pai dominador (que jamais a perdoou) e fugiu de casa para viver a forte paixão pelo poeta Robert Browning. Elizabeth casou-se com Robert, com quem teve um filho, e viveu com ele na Itália até sua morte, aos 55 anos. Apaixonada por literatura portuguesa, notabilizou-se por uma série de sonetos dedicados a Robert intitulados Sonnets from the Portuguese, e escreveu muitos outros poemas memoráveis, como “Catarina to Camoens”. Este último narra as palavras finais de Dona Catarina de Ataíde ao morrer, lembrando-se de um poema que o autor de Os Lusíadas escrevera para ela, exaltando-lhe a doçura dos olhos. Catarina morre enquanto Camões está exilado no exterior. “Catarina para Camões” foi magnificamente vertido por Fernando Pessoa para o português: ” ‘Lindo ser de olhos belos!’ Suaves frases / E deliciosas quando eu as repito! / Cem poesias outras que cantasses, / Sempre nesta a melhor terias dito” E Manuel Bandeira traduziu para o português quatro sonetos dos Sonnets from the Portuguese, incluindo o famoso Soneto XLIII (“How do I love thee? Let me count the ways.”) e, o meu favorito, o Soneto VI: “Parte: não te separas! Que jamais / Sairei de tua sombra. Por distante / Que te vás, em meu peito, a cada instante, / Juntos dois corações batem iguais. (…) / Como o vinho, que às uvas donde flui / Deve saber, é quanto faço e quanto / Sonho, que assim também todo te inclui / A ti, amor! minha outra vida, (…)”. Ao contrário de Catarina, Elizabeth morreu nos braços de seu amado, dizendo para ele a palavra beautiful.
Emily Dickinson nasceu em Massachusetts nos Estados Unidos em 1830, nunca se casou, viveu uma vida solitária e reclusa (como era comum na época para uma mulher solteira), e morreu de nefrite aos 55 anos. Somente após sua morte, a família encontrou os 1750 poemas que ela escreveu. Neles ela revela sua personalidade misteriosa, irônica ao extremo, passional. Mas as características mais marcantes da poesia de Emily Dickinson são a autoconfiança e a sensualidade, características que ela compartilha com seu contemporâneo Walt Whitman. Afirma Harold Bloom, que “dispomos de dados biográficos suficientes para saber que o drama de Dickinson inclui perdas de caráter erótico, envolvendo as pessoas de Charles Wadsworth, da cunhada Susan, e, provavelmente, Samuel Bowles e o Juiz Otis Phillips Lord”. Solitária e reclusa, mas nem tanto. E ela descreve até mesmo a perda erótica com ousadia, usando imagens que misturam o espiritual e o terreno: “A outra Vida será, p’ra mim, / Residência de plebeu / Se no Rosto do Redentor / Eu não encontrar o teu. (…) / Se ‘Deus é amor’, ele afirma, / Achamos, deve ser mesmo; / Sendo ele um ‘Deus ciumento’, / As palavras não vagam a esmo. / Se a ele ‘Tudo é possível‘, / Sempre nos diz nos sermões pregado, / Ele há de nos restituir / Nossos Deuses confiscados.” (na tradução de José Roberto O’Shea).
No fim do século XIX, em 1894, veio ao mundo a inefável Florbela Espanca, a Poetisa do Amor. Ela escreveu uma poesia forte, sensual, de um lirismo irresistível. Seus sonetos estão entre os mais belos da língua portuguesa. Seus versos vão desde os mais singelos, como: “Digo pra mim / Quando ele passa: / Ave Maria / Cheia de graça!”, passando pelos fulminantes, como: “Mas não te invejo, Amor, essa indiferença, / Que viver neste mundo sem amar / É pior que ser cego de nascença!”, chegando aos apoteóticos, como: “Saudades! Sim… talvez… e por que não?… / Se o nosso sonho foi tão alto e forte / Que bem pensara vê-lo até à morte / Deslumbrar-me de luz o coração!“. Seu domínio absoluto sobre as palavras fez dela uma poetisa cada vez mais conhecida e amada nos países de língua portuguesa. Florbela foi uma mulher altiva, culta, politizada, destemida, irreverente. Em seus curtos 36 anos de vida, ela escandalizou a sociedade provinciana portuguesa: cursou faculdade de direito, casou-se três vezes, rompeu com a família. Mas a luta constante contra o preconceito, o peso dos fracassos amorosos e uma sucessão de abortos involuntários desenvolveram nela uma crescente depressão. Sofreu um trauma violento ao perder seu irmão (que era seu melhor amigo) em um acidente aéreo, trauma do qual ela nunca se recuperou: “Eu fui na vida a irmã dum só Irmão / E já não sou a irmã de ninguém mais!”.  Quando recebeu o diagnóstico de edema pulmonar, mergulhou ainda mais na depressão e finalmente se suicidou em 1930, tomando uma sobredose de barbitúricos: “Dona Morte dos dedos de veludo, / Fecha-me os olhos que já viram tudo! / Prende-me as asas que voaram tanto! / Vim de Moirama, sou filha de rei, / Má Fada me encantou e aqui fiquei / À tua espera,… quebra-me o encanto!”.  Na verdade, ela sempre tivera uma certa tendência mórbida natural, como já denunciava este trecho de uma carta de 1920 ao seu segundo marido, trecho este que bem serviria de resposta aos moralistas “que têm a pretensão de explicar a nossa existência, como se não passássemos de desordens que precisam de esclarecimento”: “Já viste um artista sem desequilíbrio? Eu nunca vi… e é adorável a loucura quando é bela, e quando palpita numa rajada imensa de grandeza e arte!”.  Sua loucura artística a aproximou do Sagrado e fez com que ela atingisse visões próprias da sabedoria oriental, como vemos nesta passagem de seu diário: “A vida tem a incoerência dum sonho. E quem sabe se realmente estaremos a dormir e a sonhar e acabaremos por despertar um dia?”. O legado de Florbela é forte. Superado o derradeiro escândalo (o suicídio) que Florbela causou a Portugal, hoje sua pátria se orgulha imensamente dela. No soneto “Vaidade”, ela havia declarado: “Sonho que sou a Poetisa eleita, / Aquela que diz tudo e tudo sabe, / Que tem a inspiração pura e perfeita, / Que reúne num verso a imensidade! / Sonho que um verso meu tem claridade / Para encher todo o mundo!”. Seu sonho se realizou, embora ela não tenha vivido o suficiente para o testemunhar.
Ainda no começo para meados do século XX, a primeira mulher a se destacar na literatura brasileira foi a carioca Cecília Meireles, poetisa, jornalista, professora e pintora. Artista de obra prolífica, foi reconhecida e celebrada mesmo em vida, no Brasil e em Portugal. Casou-se duas vezes (seu primeiro marido, com quem teve três filhas, suicidou-se após 13 anos de casamento). Cecília faleceu de câncer aos 63 anos de idade. Seus poemas em geral abordam a vida interior, a solidão, a perda amorosa, a saudade. Todavia, uma de suas obras mais marcantes, e talvez a mais significativa para este momento que vivemos no Brasil, é o Romanceiro da Inconfidência, onde ela narra eventos relacionados à Inconfidência Mineira, partindo do ponto de vista das personagens nela envolvidas. É difícil encontrar palavras para descrever a majestade do Romanceiro. Nele, Cecília ressuscita figuras históricas como Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Chica da Silva, Joaquim José da Silva Xavier, apelidado de “Tiradentes“ e Dona Maria I (a Rainha louca), entre outros nomes célebres, além de incontáveis anônimos, tomando para si a voz do “Gênio de Vila Rica”, que é o narrador onisciente de toda a trama. Este Gênio, atento ao interminável movimento da Roda da Fortuna, profetiza logo no início: “Agora são tempos de ouro. / Os de sangue vêm depois”. Os poemas, além de narrarem fatos relacionados à Inconfidência, denunciam a situação de um Brasil que parece não ter mudado tanto nos últimos dois séculos: “Sobre o tempo vem mais tempo. / Mandam sempre os que são grandes: / e é grandeza de ministros / roubar hoje como dantes. / (…) / E a vida, em severos lances, / empobrece a quem trabalha / e enriquece os arrogantes / fidalgos e flibusteiros / que reinam mais que a Rainha / por estas minas distantes!”. Como também parece não ter mudado o modus operandi dos políticos: “Todo coberto de medo, / juro, minto, afirmo, assino. / Condeno. (Mas estou salvo!) / Para mim, só é verdade / aquilo que me convém”. Tiradentes, como mártir da Inconfidência, recebe o destaque que lhe cabe, mas temos sempre à vista a real razão de ter sido ele o escolhido pela Coroa Portuguesa para receber a punição exemplar: “Tanto tempo na masmorra! / Tanta coisa mal contada! / Os outros têm privilégios, / amigos, ouro, parentes… / Só ele é que não tem nada”.  Todavia, mesmo no seio da mais densa escuridão, Cecília nos treina a ver “a força, o jogo, o acidente / da indizível conjunção / que ordena vidas e mundos / em pólos inexoráveis / de ruína e de exaltação”, e nos ensina a olhar para a História com desapego e serenidade, pois “pelos caminhos do mundo, / nenhum destino se perde: / há os grandes sonhos dos homens, / e a surda força dos vermes“.
Estas mulheres extraordinárias, entre tantas outras, Musas que permanecem cada vez mais vivas através das gerações, continuam seu trabalho eterno de inspirar e humanizar homens e mulheres de todo o mundo. Confiemos nelas. Ouçamos o que elas têm a cantar! Elas compreendem a fundo o que Homero escreveu na Odisseia: “Se os deuses fiaram a ruína dos homens foi para proporcionar poemas à posteridade”.  Estas poetisas indômitas transformaram suas próprias dores, lutas e fracassos em poemas cheios de esplendor e sabedoria, eternizando sua presença junto a nós através de suas obras! Lendo-as, muitas vezes somos quase que forçados a repetir os versos de Florbela Espanca: “Poeta igual a mim, ai quem me dera / Dizer o que tu dizes!… Quem soubera / Velar a minha Dor deste teu manto!”.

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